Nova série do Fantástico adapta textos de Clarice Lispector descobertos por professora da UNIFAL-MG

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A pesquisadora da trajetória da escritora na imprensa, Aparecida Maria Nunes, foi entrevistada pela produção do programa

A nova série que estreia no próximo domingo, 27/10, no programa Fantástico da Rede Globo, “Correio Feminino”, é inspirada em textos de Clarice Lispector resgatados pela pesquisadora e professora de Literatura Brasileira da UNIFAL-MG Aparecida Maria Nunes, que foi entrevistada pela produção do programa, exibido no último dia 20.

Pioneira e referência em “Clarice Lispector jornalista”, Profa. Aparecida revela que pouco se sabia do trabalho de Clarice na imprensa brasileira, quando iniciou seus estudos para o mestrado na Universidade de São Paulo, no início dos anos 1980. As informações eram escassas e desencontradas, pois não havia consenso nem mesmo para a data de nascimento da escritora. Como então precisar a trajetória que a ficcionista realizou na imprensa? Que textos produziu? Onde trabalhou? Profa. Aparecida pesquisou por décadas em arquivos de jornais, paralelamente aos depoimentos que colhia de familiares, amigos, jornalistas e possíveis colegas de redação da autora de Perto do Coração Selvagem. E o resultado pode ser conferido na dissertação de mestrado e na tese de doutorado, defendidas na USP, e no livro que a pesquisadora publicou em 2006: Clarice Lispector Jornalista: Páginas Femininas & Outras Páginas, pela editora Senac/SP.

Em quase quarenta anos de atividade na imprensa brasileira, percurso esse iniciado quando Clarice Lispector era uma jovem de 20 anos, ela fez um pouco de tudo. Foi repórter, cronista, entrevistadora, tradutora e colunista de páginas femininas. Se não fosse pela investigação empreendida pela professora, talvez não conheceríamos esse trabalho, os pseudônimos que a escritora utilizou para produzir as páginas femininas, e os textos inéditos publicados pela ficcionista nessas quase 500 colunas, sobre moda, beleza, comportamento, sedução e feminilidade, que o Fantástico levará ao ar em oito episódios. A série estará centrada nos conselhos de Helen Palmer, pseudônimo que Clarice utilizou para produzir a coluna “Correio Feminino” do jornal Correio da Manhã, entre 1959 e 1961. Mas, comenta a pesquisadora, que é importante lembrar que Clarice Lispector também foi a Tereza Quadros, em 1952, da página “Entre Mulheres” do semanário Comício; e a Ilka Soares da página “Só para Mulheres”, entre 1960 e 1961, do Diário da Noite.

Para compreender a especificidade dessas páginas, Profa. Aparecida afirma que é importante salientar a época em que cada uma das colunas foi publicada e o perfil do público-alvo, ou seja, a leitora de jornal de Clarice, entre outros aspectos. Afinal, a escritora tinha uma interlocutora diferente da de seus livros. “Clarice estava consciente de que não podia esquecer o perfil do público para quem dava conselhos utilitários e ensinava a refletir sobre cenas domésticas e o universo da mulher. A ficcionista sabia também que tinha de manejar uma linguagem mais despojada e adotar um discurso calcado na estética da imprensa feminina, construída no tom de conversa íntima, afetiva e persuasiva”, conclui a pesquisadora.

Ainda sobre a questão do público-alvo das páginas femininas escritas por Clarice, de acordo com a professora, deve-se levar em conta, a proposta dos jornais e a época em que foram veiculados. “Comício pretendia fazer oposição ao governo de Getúlio Vargas. Era um jornal com pretensões políticas bem definidas. Durou alguns meses apenas e não foi possível consolidar o perfil da leitora de Clarice em 1952, mas, em contrapartida, permitiu delinear o perfil da Clarice colunista de página feminina, cujo trabalho ressoaria nas outras colunas femininas que aceitou escrever, quando se separa do marido e retorna definitivamente ao Brasil, com seus dois filhos, em 1959”. Profa. Aparecida faz questão de frisar que, por aquela ocasião, o Brasil vivia os anos dourados e o Correio da Manhã gozava de prestígio. Para a coluna que Clarice aceita escrever, a “Correio Feminino”, a proposta teve origem e características bem distintas da página feminina de Comício: Clarice deveria ser Helen Palmer, pseudônimo criado pelo departamento de Relações Públicas da indústria de cosméticos Pond’s, para que aconselhasse sua leitora a cuidar melhor da aparência e da cútis e, dessa maneira, de forma subliminar, incentivá-la a consumir os cremes da marca Pond’s que já se encontravam no mercado brasileiro. O público-alvo, nesse caso, seria a mulher que começava a despontar no mercado de trabalho, mas que ainda se dividia entre os afazeres de casa, o marido e os filhos. “Pelo teor dos textos, percebemos que a coluna pretendia atingir tanto a jovem que ainda desejava se casar e estava à procura de sua feminilidade, quanto à mulher quarentona, valorizada na coluna, pela sua experiência e também pelos atrativos de beleza”, explica a professora. No Diário da Noite, a coluna voltava-se para as leitoras que se interessavam pelos conselhos do mundo das passarelas transmitidos por Clarice na voz da atriz e modelo Ilka Soares, símbolo de elegância e beleza femininas. Mais uma vez as matérias se dirigiam àquelas mulheres jovens ou casadas, deslumbradas com o mundo das estrelas de cinema (Brigitte Bardot e Sophia Loren), com os novos produtos domésticos e com a linha de cosméticos.

Em tom de conselho, receita ou segredo, bem ao gosto da estética da imprensa feminina, adverte a pesquisadora que tais narrativas revelam, em confronto com a obra literária de Clarice Lispector, ser muitas vezes a gênese ou o embrião de algum conto ou romance seu. Ou seja, a escritora Clarice Lispector também aproveitava a página feminina como laboratório de ficção. E o exemplo mais relevante é o de uma aparente receita para matar baratas que a escritora publicou em 1952. E que mais tarde seria desenvolvida no conto “A quinta história”. Mas todo cuidado é pouco, quando se trata de Clarice Lispector. Profa. Aparecida afirma que Clarice aparentemente seguia as normas estabelecidas pela imprensa feminina. Uma leitura desatenta sugere que a colunista mantinha o status quo. No entanto, Clarice subvertia a página, procurava conscientizar sua leitora do papel que a mulher representava na sociedade, principalmente naquela sociedade que já apresentava transformações profundas, em termos de comportamento e de valores. Clarice, em síntese, incentivava sua interlocutora a se estudar, para encontrar o próprio rosto e ser, enfim, mulher.

A seguir, um exemplo, dos conselhos de Helen Palmer, publicado em 23 de dezembro de 1959:


 

Assista ao vídeo do Fantástico sobre a nova série, que destaca uma entrevista com a Profa. Aparecida:

Este vídeo também pode ser acessado no portal do Fantástico, link: g1.globo.com/fantastico/noticia/2013/10/tres-geracoes-ouvem-conselhos-de-helen-palmer-em-nova-serie.html 

 

Informações: Aparecida Maria Nunes, professora e pesquisadora de Literatura Brasileira do Instituto de Ciências Humanas e Letras da UNIFAL-MG